Nasce uma estrela


Arnaldo Niskier

Pena que o escritor Artur da Távola (Paulo Alberto Monteiro de Barros) não esteja mais entre nós. Há 30 anos, mostrei-lhe os originais (eram 15 capítulos) que uma jovem de 11 anos havia elaborado, de forma silenciosa, quase escondida. Sempre gentil, como era da sua natureza, o cronista leu tudo carinhosamente. Ao cabo de duas semanas, estivemos juntos. Lembro suas palavras: “Não há dúvida. Trata-se de uma escritora. O futuro dirá.”
 
A vida segue os seus caminhos e dá as voltas conhecidas e desconhecidas. Aquela jovem se formou em Psicologia, depois fez Psicanálise (com um belíssimo estudo sobre o tempo e sobre o amor), e não mais que de repente recomeça a escrever, aí sem distinção de gênero. Produz contos, ensaios, poesia. Uma atrás da outra, de preferência escrevendo à noite, quando as filhas e o marido estavam entregues ao sono.
 
Tenho em mãos o livro “Esperança” (Editora Primor), lançado em 1982. Recorro a algumas de suas frases: “Ele era feliz porque tinha a capacidade de ser gente... Tinha a esperança de um mundo melhor.” Segue a escritora de 11 anos: “Porque não existe o encontro sem a procura, muito menos a procura sem o encontro.” E mais: “Ele tinha amado do seu jeito. Tinha procurado de sua maneira, tinha vivido do seu modo.” É o estilo pessoal que marca as 80 páginas daquela primeira obra.
 
Agora, na maturidade, ainda não tem o seu livro. Mas procura inspiração em grandes autores, o maior dos quais é indiscutível: Machado de Assis. Vejam esse trecho do “Corte da tesoura”: “A linha, por sua vez, desfiava seu carretel sobre a peleja. Perdendo a linha, alegava expandir-se prosa ao passear costurada em vestes nobres, enquanto a outra se enfurnava numa cesta de costura embromada.” Com a intervenção da tesoura (para ela um tesouro), “o talho inaugura formas, fia fios soltos e traduz retalhos em panos, sempre fazendo fazendas.”
 
Mas ela não esconde o seu estilo por trás do reposteiro dos clássicos. A vida nela palpita, sente o drama dos humildes, e sofre com a tragédia da chuva em Niterói, com as vidas perdidas em virtude da incúria oficial. Traduz o seu sentimento no poema “Trabalho sobre escombros”:
“A comunidade residia sobre o lixo/sobre o resíduo construíam-se vidas/Assim somos todos, sobrevivendo a rolamentos/Soterrados de ala(r)gamentos tão vastos e gastos/ Ainda por cima o lixo, fingindo amparar eventos/Instalamos nossas casas no alto esterco dos baixos/Entulhados por fora, destroçados por dentro/Resta perecível o assombro da chuva em montes frios/Que a vida não é só deslize, mas é de dia que se morre nos escombros.”
 
Faz-se poesia mesmo escrevendo em prosa, pois a rima não é necessária. O que importa é a palavra, o seu significado e, às vezes, o que se esconde por trás dele. Há ritmo e força na inspiração daquela jovem, que, hoje, aos 41 anos de idade, com um originalíssimo jogo de palavras, desabrocha definitivamente como escritora. Seu nome: Sandra Flanzer, minha filha.