A Verdade sobre o Deicídio


Arnaldo Niskier

 

Ao participar do Salão do Livro, em Paris,  tive minha atenção despertada pelo livro “Jesus de Nazaré”, escrito pelo Cardeal Joseph Ratzinger, hoje o Papa Bento XVI (Éditions du Rocher). Trata-se de um testemunho ecumênico a respeito de fatos que nunca foram muito bem esclarecidos.
Com uma linguagem precisa e muitas informações sólidas, o autor procurou colocar luz sobre os mistérios da vida de Jesus, a partir da sua entrada em Jerusalém, vindo da Galileia. Frequentou, na Cidade Santa, como judeu que era, o famoso Templo, destruído  nos anos 70 pelos romanos.
 
Houve divergências com alguns judeus da época,, que não reconheciam a realeza de Jesus, já então considerado pelos seus seguidores como rei da paz, da simplicidade e dos pobres.
O Papa Bento XVI reconhece que Jesus reivindicava, de fato, um direito real, jamais baseado na força contra Roma, mas na paz de Deus, “o único poder que salva”. Ele era visto como filho de David, ou mesmo um novo Moisés.
 
As autoridades do Templo insurgiram-se contra Jesus e determinaram a sua prisão, mas o processo foi completado no tribunal do governador romano Pôncio Pilatos, quando se determinou a sua condenação à morte na cruz. Portanto, a condenação adquiriu características puramente políticas. Surgiram, assim, dois níveis de preocupação nos anos 70: de uma parte a legítima ideia de proteger o Templo e o povo e, de outra, a obsessão egoísta de poder por parte do grupo dominante, representado no Sinédrio, assembleia de anciãos judeus, existente na Palestina, sob domínio romano.
 
Os membros do Sinédrio à época demonstraram grande perplexidade diante do perigo que representava o movimento revolucionário em torno de Jesus, sobretudo em virtude do seu carisma. Jesus deveria morrer pela nação. Na linguagem hebraica, isso exprimiria a esperança de que, com a vinda do Messias, os israelitas dispersos pelo mundo seriam reunidos no seu próprio país.
As crianças de Deus dispersas não eram somente os judeus, mas as  crianças do patriarca Abrahão: pessoas que, como ele, estavam à procura de Deus, como os muçulmanos dele também descendentes.
Depois da reunião do Sinédrio, estabeleceu-se o processo contra Jesus, preso no Monte das Oliveiras. Outro processo foi criado diante do governador romano Pôncio Pilatos, este bem mais rigoroso do que o feito pelo Sinédrio, que foi considerado mais um interrogatório profundo do que propriamente um processo. Havia dúvidas sobre o comportamento de Jesus em relação à Torá, onde se encontra toda a doutrina judaica.
 
Houve uma acusação de blasfêmia contra o Templo, com Jesus defendendo a sua purificação.
A segunda acusação referia-se à sua pretensão messiânica, colocando-se ao lado de Deus, quando para a fé de Israel existia um só e único Deus. Foi por essa razão que, na Cruz, foi inscrita a expressão INRI (Jesus de Nazaré Rei dos Judeus). Ele, assim, não era reconhecido como filho de Deus, Quando, no Sinédrio, ele é indagado se é filho de Deus, responde: “Tu o dizes, eu sou.” Pareceu aos juízes um ataque insuportável à grandeza de Deus, à sua unicidade. Seria, assim, inevitável que fosse levado diante do tribunal de Pilatos, para a sentença definitiva. Mesmo julgado por blasfêmia, no Sinédrio, a pena capital era na época reservada aos romanos. A reivindicação da realeza messiânica era um crime político, que deveria ser punido pela justiça romana. A afirmação da realeza messiânica seria o motivo da sua morte.
 
O Papa Bento XVI pergunta, no livro citado: “Quais eram precisamente os acusadores? Quem insistiu para que Jesus fosse condenado à morte? Devemos refletir sobre isso. Segundo João foram simplesmente os “Judeus”. Mas essa expressão não indica, de nenhuma maneira, o povo de Israel. Jesus era um israelita, como todos os seus seguidores.”
 
O que ficou claro, em estudos posteriores, é que Joao queria se referir à aristocracia do Templo, ou seja, a um número extremamente limitado de Judeus. Mesmo que alguns deles tenham aplaudido a condenação, definitivamente, não foi o povo de Israel responsável pela decisão. Portanto, a voz do povo não se manifestou na sua integralidade. Aliás, como poderia todo o povo estar presente no momento em que se pedia a morte de Jesus? Depois, ficou claro o aspecto cruel do Estado romano e todas as arbitrariedades do poder imperial. Afirma o Papa Bento XVI que “Pilatos era um homem que sabia intervir brutalmente, com a aparência de fazê-lo para garantir a ordem pública.”
 
Seguindo interpretação dos romanos, a apresentação de Jesus como Rei dos Judeus era grave. Só Roma poderia atribuir esse tipo de poder, como fez com Herodes. Um rei assim considerado ameaçava a pax romana e, por conseguinte, era passível de ser condenado à morte. Mas ele não tinha nada de sério contra Jesus. Achava-o, na verdade, apenas um “exaltado religioso”. Ele não tinha forças militares, seu compromisso era com a “verdade”, o seu reino não era deste mundo.
Mas o que seria a “verdade”? Por intermédio das suas parábolas e mesmo diante da cruz em que foi morto, Jesus defendeu a realeza da verdade, como instrumento da libertação do homem.
 
Pilatos raciocinou: “Se ele não tem tropas e apenas desobedece à Torá, o que importa aos romanos?” Mas tem medo da liderança de Jesus e receia que ele esteja contra os desígnios do imperador. Foi com tal sentimento que condenou Jesus ao flagelo e à pena de morte na cruz, considerada uma punição extremamente bárbara. Ecce homo – eis o homem, disse o governador, apresentando Jesus ao povo. “Eis aqui o vosso rei!” – ironizou.
 
A Paz foi para ele mais importante do que a Justiça.
Há, nessa decisão, notórias lições de direitos, para nossa reflexão. E uma conclusão bastante cristalina: não há cabimento na versão divulgada durante séculos de que o povo judeus era deicida, o que serviu para ativar ondas seguidas de antissemitismo.